"Nunca conheci quem tivesse levado porrada."

2004/11/28

Desassossego da madrugada...


"Nos nao podemos amar, filho. O amor e' a mais carnal das ilusoes. Amar e' possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua materia, come-lo, inclui-lo em nos... E essa impossiblidade seria temporaria, porque o nosso corpo passa e se transforma, porque nos nao possuimos o nosso corpo (possuimos apenas a nossa sensacao dele), e porque, uma vez possuido esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...
Possuimos a alma? Ouve-me em silencio: Nos nao a possuimos. Nem a nossa alma e' nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma ha o abismo de serem almas.
Que possuimos? que possuimos? Que nos leva a amar? A beleza? E nos possuimo-la amando? A mais ferroz e dominadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo nao abraca a beleza, abraca a carne celulada e gordurosa; o beijo nao toca na beleza da boca, mas na carne humida dos labios pereciveis e mucosas; a propria copula e' um contacto apenas, um contacto esfregado e proximo, mas nao uma penetracao real, sequer de um corpo por outro corpo... Que possuimos nos? que possuimos?
As nossas sensacoes, ao menos? Ao menos o amor e' um meio de nos possuirmos, a nos, nas nossas sensacoes? e', ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desaparecida a sensacao, fica a memoria dela connosco sempre, e assim, realmente possuimos...
Desenganemos ate disto. Nos nem as nossas sensacoes possuimos. Nao fales. A memoria, afinal, e' a sensacao do passado... E toda a sensacao e' uma ilusao.
- Escuta-me, escuta-me sempre. Escuta-me e nao olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o crespusculo, nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago. Escuta-me em silencio...
Nos nao possuimos as nossas sensacoes... Nos nao nos possuimos nelas."


Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, trecho 363


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