"Nunca conheci quem tivesse levado porrada."

2005/09/17

Faíza Hayat...


Suponho que ja o escrevi por estes lados - a única coisa que me interessa (e que me cativa a atenção) na revista xis sao os textos da Faiza. Leio sempre deliciado as suas crónicas.
Como sempre, Faiza, assina mais um texto memorável. Relatos da sua vida contados de uma forma muito honesta e verdadeira. Ao lermos, transmite-nos a ideia que esta a nosso lado a contar uma historia sua... Existe imensa intimidade nos seus textos...
Tal como me aconteceu a mim, aconselho a leitura do texto ao som de Sigur Ros - Glósóli .
Nao resisto a deixar o texto:

Um rio escuro

Gosto de folhear velhos álbuns de fotografias, inclusive, de pessoas que me são completamente estranhas. Ao mesmo tempo faço-o sempre com um certo receio. É como mergulhar num rio escuro, de olhos bem abertos, sob a clara luz do verão. Às vezes sinto-me arrastada e tenho medo de não conseguir regressar à superfície. As imagens antigas, como as velhas canções – aquelas que ficámos muito tempo sem escutar – possuem o estranho poder de transtornar o tempo. Emergimos atordoados, o coração velado por uma sombra simultaneamente amarga e doce, a sensação de que o tempo corre, de que corre realmente, como um salteador, afastando-nos para sempre de quem fomos e dos lugares e das pessoas que um dia amámos. Olho essas velhas imagens, eu, por exemplo, com colegas da faculdade num trabalho de campo, e vou-me pouco a pouco recordando de mim, como de uma personagem de um filme que vi faz muitos anos, e depois esqueci.

Hoje, folheando um romance de Jorge Amado, A Tenda dos Milagres, numa edição antiga, encontrei uma fotografia dos meus pais, que nunca vira antes. Estão abraçados, muito jovens ambos, diante de uma paisagem de capim alto e imbondeiros. Moçambique, provavelmente. Filipa olha-me feliz. Era feliz para sempre, ali, diante daquele cenário de filme de aventuras, abraçada ao grande amor da sua vida. Ainda era o grande amor da sua vida. Eu, porém, que estou no futuro, conheço o resto da história. Por isso, suponho que seja por isso, o meu coração enche-se de uma espécie de angústia enquanto estudo a fotografia. Deus deve experimentar uma aflição semelhante de cada vez que se debruça sobre nós, lá do alto, da fria eternidade em que medita. Conhecer o final de todas as histórias não é um privilégio – é uma maldição.

Naquela época eu ainda não era nascida. Filipa não podia imaginar que iria ter três filhas e que numa tarde de verão, num domingo sonolento, uma delas se debruçaria perplexa sobre o seu rosto juvenil. Nas costas da fotografia dei com um breve poema escrito a lápis:
“Éramos de mãos dadas num jardim futuro
A luz se demorando, mansa, em tua pele
Num vago, fulvo, fulgor de mel
Havia ao longe, talvez, um rumor de metais
E depois o escuro
E então cantaste – tua voz deslizando como a tarde
Por entre o alado alarde dos pardais”.

Reconheci a letra do meu pai. A sua assinatura. Telefonei-lhe há pouco: “Tu, quando eras jovem, escrevias poesia?”. Farid assustou-se. Negou com veemência. Li-lhe os versos. Ficou em silêncio um momento; escutei o ruído do seu corpo a mergulhar no rio; depois riu-se: “Caramba, filha! Onde encontraste isso?”. A voz dele era agora mais doce, um pouco envergonhada:“Eu escrevia coisas assim para a tua mãe. Disparates...” Farid e Filipa. Não os meus pais, apenas Farid e Filipa. Nunca tinha pensado neles dessa forma. Nunca tinha pensado neles antes de serem meus pais. “Filipa cantava?” O silêncio outra vez. Novo mergulho. “Cantava. Cantava muito bem. Acompanhava-se ao piano. Cantava jazz, coisas daquele tempo. Nunca a ouviste cantar?” Não me recordo. Creio que não.

Para ser sincera nunca conheci aquela jovem de vinte anos, de olhar apaixonado, que tocava piano, cantava jazz, e sonhava em ser actriz. Também nunca conheci o homem que a abraça, um rapaz tímido, que deixou Goa para estudar medicina em Lisboa, e escrevia em segredo versos de amor. Só hoje os descobri. Eu sabia (julgava saber) apenas o fim da história. Agora que conheço o princípio já não tenho a certeza se houve realmenteum fim. Suspeito (foi algo que me ocorreu agora) que todos os finais são provisórios.

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